O professor da Universidade Nova de Lisboa, considerado em Janeiro pela revista francesaNouvel Observateur como um dos 25 grandes pensadores do mundo, classifica Portugal como o País da não-inscrição, da negação do conflito e da normalização, dominado pelos medos e pela inveja, herdados do salazarismo, onde não existe um espaço público, lugar ocupado actualmente pelos média.
O livro, editado pela Relógio d´Água, transformou-se repentinamente num best seller, pelo que não admira que os lugares tenham sido poucos para acolher todos os que se deslocaram à livraria de Leiria nesta noite para ouvir o escritor do momento. Contudo, a fama repentina não seduz o autor, que promete retirar-se brevemente do palco mediático: “Os média não estão interessados na Filosofia, mas apenas no efeito mediático da Filosofia”, justifica.
José Gil começa por explicar o que não fez com este livro: não fez uma abordagem de Portugal do ponto de vista disciplinar ou científico. A obra não resulta de um inquérito, de um estudo sociológico ou demográfico nem sequer uma história das mentalidades vigentes em Portugal. Escreveu abstractamente sobre a vida dos portugueses.
O livro toca nas pessoas, segundo alguns para mortificar, mas José Gil assegura que não quer mortificar ninguém, nem pretende que o livro arraste consigo forças mortíferas ou forças de parilisia, pelo contrário, deseja que o livro desencadeie uma esperança de nascimento. Para o autor, a inveja, que tem imensas estratégias, não é uma relação puramente psicológica, é mais do que isso: trata-se de um sistema que tem autonomia e vive em meios fechados, que cria entraves àqueles que têm ideias, iniciativas e empreendimentos.
“A mentira, ou seja, distorção da verdade foi levada a um ponto tal no discurso político português que levou ao descrédito dos políticos e do discurso político, da Esquerda à Direita”, adianta o filósofo, acrescentando que “é preciso um novo pacto, o que não implica dizer a verdade – o inverso da mentira não é a verdade – já que não se pode ter um discurso político verdadeiro, mas pode aproximar-se da verdade”.
O sucesso editorial e social deste livro extravasou em muito os círculos intelectuais. Segundo José Gil, “O livro toca nesses podres em que a população portuguesa atingiu um grau de insuportabilidade. O que o livro provoca em muitos é “vamos fazer qualquer coisa”. Não se pode continuar assim, não sabendo bem o que fazer. Quando eu falo da não-inscrição é porque nós precisamos de respirar, o que significa criar, fazer, ver, ou seja, ter a noção de que quando nós fazemos, escrevemos, pintamos, compomos, etc., nós temos uma inscrição, afirmamos qualquer coisa que se marca no real, se transforma e cria real”.
O filósofo exemplificou: “Se vamos a um espectáculo de um coreógrafo que vem a Portugal, gostamos de dança e descobrimos qualquer coisa de novo, uma parte daquele espectáculo deveria derrubar alguma coisa na nossa vida e mudar a nossa vida, descobrir espaços diferentes, maneiras de falar e de comunicar, etc. mas o que acontece é que tudo isso fica para dentro. Nós gostámos muito, tivemos mesmo em êxtase, mas ao sair do espectáculo voltamos para casa, gostámos, mas não acontece nada… O feed back nos jornais é geralmente uma crítica sempre descritiva porque tem-se medo de inscrever. Não se ousa criticar porque se tem medo”.
José Gil esclarece que não está a tentar caracterizar o espírito dos portugueses, mas considera que há uma série de entraves à nossa possibilidade de discussão que tem várias décadas. “Eu considero, por exemplo, que os portugueses são potencialmente tão capazes de empreender e de inovar como outros povos. Se não temos génios precisamos de condições de criação subjectiva para criar. Por exemplo, eu gosto de admirar porque me dá força admirar. Em Portugal não se admira, ou se faz um elogio tão grande do género «este é o maior escritor do século», que se torna irreal, ou se entra na fulanização”, analisa.
Para o autor, “somos uma sociedade de negação do enfrentamento, de negação do conflito por temos medo de ferir o outro e ferir o outro é ferirmo-nos a nós próprios, por ricochete. Não acho que a inveja seja uma característica intrínseca do povo português. A inveja, o queixume, o medo de enfrentar as inibições, a normalização que existe há tanto tempo são traços que, se parecem traços de uma portugalidade, é porque as condições de subjectivização, aquelas que fazem nascer a nossa subjectividade, permaneceram assim há décadas”. No entanto, acredita que é possível mudar.
Relativamente à inveja, Gil admite que “não é uma característica portuguesa, antes um dos sentimentos mais espalhados pelo mundo. Simplesmente acontece que em Portugal a inveja tem uma força tal porque nós somos uma sociedade fechada. E quando as sociedades se fecham, tudo se concentra, tudo se paralisa, tudo se adensa e não respira. Uma universidade é um antro de inveja em qualquer parte do mundo, seja nos Estados Unidos, em França ou na Inglaterra. Mas vimos cá para fora e respiramos ar puro. Em Portugal não, sai-se cá para dentro e não para fora”, refere, defendendo, por isso, que a inveja está em toda a parte no País.
O filósofo argumenta que “se nós nos abrirmos ao exterior mudamos as condições de subjectivização e temos possibilidade de ver florescer a mudança. Para que haja mudança, é preciso que haja desejo de mudança. Nunca uma sociedade é completamente fechada, há sempre fracturas, linhas de fuga. Uma das linhas de fuga pode ser a loucura. Eis alguém que não quis ser moldado. Se há linhas de fuga, então procuremos as linhas de fuga. Elas estão sempre na nossa singularidade. O que me impressiona no Portugal normalizado de hoje é quão pouca diversidade existe na singularidade portuguesa”.
E particulariza: “Os artistas dos anos 60 eram o que se poderia dizer «meio passados» porque o real não era possível e eram de uma riqueza que não se vê hoje em dia. A educação vai criando inibições e, aos 20 anos, somos mais ou menos normalizados. Normalizam-nos porque criam condições com o medo e a inveja para paralisar as forças que existem em nós. Temos muito mais forças do que aquelas que manifestamos. Sentimos muito mais profundamente do que ousamos sentir”. E lança um desafio: “Rasguemos o texto e depois inventemos”.
Elogia o Brasil, pelo seu potencial criativo apesar dos problemas sociais que atravessa: “O Brasil é um país cheio de bolsas (de criatividade) extraordinárias e quando volto de lá venho com dez baterias carregadas”, revela. Relativamente à Europa, considera que foi ela que entrou em Portugal e não o contrário, passando Portugal de um País disciplinar a um País de controlo. O autor coloca também um ponto de interrogação no ideal europeu: “Hoje ninguém sabe o que vai ser a Europa”.
Quase meio século de salazarismo, segundo o autor, deixaram marcas indeléveis: “Houve muitas gerações castradas pelo salazarismo que herdaram o medo. A maioria dos portugueses aceitaram o salazarismo”, refere. José Gil defende que o 25 de Abril não provocou um corte com o sistema e o mesmo aconteceu com a guerra colonial, apenas redescoberta há 5 anos, quando foram reconhecidos, nomeadamente, os problemas causados com o stresse de guerra. O professor é de opinião que a guerra colonial não foi inscrita no debate dos portugueses, antes foi uma página voltada sem que tivesse sido inscrita. “Queremos viver numa espécie de nevoeiro”, conclui.
José Gil licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Letras de Paris (Sorbonne) em 1968. Em 1969, obteve a “maîtrise de Philosophie” e, em 1982, o “doctorat d´Etat de Philosophie”. Actualmente é professor catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. José Gil tem obras publicadas no Brasil e está traduzido nos EUA, França e Itália.
Fonte: Tinta Fresca (2005)